1. O fundamento teológico da veneração dos ícones
Igreja Ortodoxa possui um tesouro inestimável, não só no campo da patrística, como também no campo da arte eclesiástica. Como se sabe, a veneração dos ícones é muito importante na Igreja Ortodoxa, pois o ícone é muito mais do que uma simples imagem. Não é simplesmente um adorno do templo ou uma ilustração das Sagradas Escrituras, mas sim, tem uma correspondência total com elas, é um objeto que entra organicamente na vida dos ofícios divinos. Com isso se explica o significado que a Igreja dá ao ícone, claro que não a qualquer representação em geral, mas ao ícone canônico, aquela imagem que a própria Igreja elaborou no decorrer de sua história na luta contra o paganismo e as heresias; aquela imagem pela qual, no período iconoclasta, pagou com o sangue de seus mártires e confessores da fé.
«Ícone» é uma palavra grega que significa «imagem», representação. No ícone, a Igreja não vê apenas um aspecto qualquer do ensinamento cristão da fé, mas a expressão do cristianismo em sua totalidade, a Ortodoxia como tal.
Por isso, é impossível compreender ou explicar a arte eclesiástica fora da Igreja e de sua vida. O ícone, como imagem sagrada, é uma das manifestações da Tradição da Igreja. A veneração dos ícones do Salvador, da Mãe de Deus, dos anjos e dos santos é um dogma da fé cristã que foi formulado no II Concílio Ecumênico de Nicéia (787) - um dogma que emana da confissão fundamental da Igreja: a encarnação do Filho de Deus. O ícone de Nosso Senhor é o testemunho de sua encarnação, verdadeira, não ilusória. O significado dogmático do ícone foi claramente formulado durante o período iconoclasta.
Ao defender os ícones, a Igreja Ortodoxa não defendia seu aspecto didático ou estético, mas o próprio fundamento da fé cristã: o dogma da encarnação, já que o ícone do Salvador é, ao mesmo tempo, testemunha de sua encarnação e nossa confissão de Jesus Cristo como Deus.
«Eu vi a imagem humana de Deus, e minha alma foi salva», afirmou São João Damasceno. Em outras palavras, o ícone do Salvador é, por um lado, o testemunho da plenitude e da realidade de sua encarnação, a representação da personalidade divina do Verbo encarnado, uma natureza nova transfigurada; e por outro lado, testemunho da realidade de nosso conhecimento de Jesus Cristo como Deus, isto é, a revelação. A aspiração do homem a Deus, que é o aspecto subjetivo da fé, encontra-se com a resposta de Deus ao homem - a revelação, que é o conhecimento religioso objetivo, expresso em palavras e imagens. Desse modo, a arte litúrgica é não somente oferenda a Deus, mas também a descida de Deus; e arte na qual se produz o encontro de Deus com o homem, da graça com a natureza, da eternidade com o temporal. A tradição é a revelação que continua viva. É a vida da Igreja no Espírito Santo. A experiência daquele que a recebeu, cresce com a experiência de todos aqueles que a receberam depois dele. Esta conjugação de unidade da verdade da revelação com a experiência pessoal de sua recepção é um dos aspectos fundamentais da Ortodoxia: sua característica de ser Conciliar.
Na essência, a Igreja Ortodoxa vê na encarnação do Filho de Deus o fundamento para a veneração dos ícones. Os ícones elevam nosso pensamento da veneração ao Arquétipo.
2. Significado da «canonicidade» dos ícones
A tradição na arte eclesiástica, do mesmo modo que na Igreja, é composta de duas realidades: o fato histórico e a revelação atemporal, indissoluvelmente unidos entre si em forma orgânica. Por um lado, a representação da festividade ou do santo dá-nos um contexto histórico preciso e nos transporta a seu Arquétipo.
Por outro lado, não é uma simples representação de um feito histórico ou de uma pessoa entre outras. O ícone nos dá este acontecimento ou a imagem do santo fora do tempo, mostrando-nos seu significado dogmático e estético, seu lugar no plano geral da Economia Divina. A iconografia da festividade nos mostra seu conteúdo dogmático, seu lugar na cadeia de eventos salvíficos da história humana. Através do ícone do santo conhecemos seu lugar e seu significado na Igreja, o caráter de seu serviço a Deus: como apóstolo, santo imitador de Cristo ou mártir.
Finalmente, nos ícones do Salvador e da Mãe de Deus está expressa toda a plenitude da Economia Divina.
Deste modo, cada ícone é uma parte do todo, da Igreja, não só no sentido interno e espiritual, mas também exterior. A construção arquitetônica do ícone, tanto interna quanto externa, compõe uma unidade com a arquitetura do templo. Cada ícone é para nós, tanto num sentido como noutro, o mundo levado a um estado de harmonia e de ordem superior.
Dizia São João Damasceno:
Não me inclino diante da criação em lugar do Criador, mas me inclino diante do Criador que se fez criatura como eu, sem humilhar sua dignidade, sem sofrer nenhuma divisão, desceu na forma de uma criatura para glorificar minha natureza e faze-la partícipe da natureza divina. Junto com o Rei e Deus, inclino-me diante da púrpura do Corpo, não como vestimenta e não como uma quarta Pessoa, não, mas como convertida em partícipe dessa mesma Divindade. Do mesmo modo que o Verbo, sem sofrer mudança alguma, se fez Carne, do mesmo modo, a Carne se fez Verbo sem perder aquilo que ela é, melhor dizendo, sendo uma com o Verbo na Hipóstasis. Por isso, com atrevimento represento o Deus invisível não como tal, mas sabendo-se feito visível por nossa carne através da participação na Carne e no Sangue. Não represento a Divindade invisível, mas por intermédio da imagem expresso a Carne de Deus que foi visível».
O Divino, o invisível, o incorpóreo não se representa por si mesmo, mas por força da encarnação do Logos, segunda Hipóstasis da Santíssima Trindade. A imagem, o ícone, antes de mais nada é semelhança, modelo, impressão do Arquétipo. Uma representação tal não se parece com a pessoa ou objeto representado como num espelho ou de forma naturalista. Seu objetivo é tornar evidentes as coisas secretas e mostrá-las. O princípio da iconografia, a relação da imagem com o Arquétipo penetra todo o universo. Por sua natureza, é o reflexo das relações, transcendentes para este mundo, entre Deus Pai e Deus Filho. Neste caso, a imagem é semelhante em tudo ao Arquétipo. O ícone está ligado ao Arquétipo, não por natureza, mas por energia. A energia de Deus, ao penetrar a imagem, a santifica e, ao manifestar-se através dela, eleva o homem até Deus. Por isso, o que venera um ícone, não venera a matéria da qual foi feito, mas venera o mesmo Arquétipo por intermédio da união, na oração, com Ele.
O ícone reflete a santidade, o mundo transfigurado, o mundo superior; a través dele as imagens dos ícones possuem uma essência significativa e representativa: o mundo transfigurado. Isto está fixo no cânon. A canonicidade de um ícone não está tanto no sujeito, como no principio da representação do corpo transfigurado por meio de sinais estabelecidos. A teologia cristã diferencia a incognoscível essência de Deus e suas manifestações criadoras, isto é, a energia, dando-lhes Nomes Divinos. Um destes Nomes é a «Beleza».
Ela é de essência superior e esta acima do mundano, isto é, é transcendente a todo o sensível. Por isso a arte da Igreja tem por princípio o antinaturalismo. A Beleza é uma idéia central da estética cristã. A Beleza, como Nome Divino, é de natureza luminosa. Deus é luz e nele não há nenhuma escuridão. Cristo é a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo.
Os testemunhos das Sagradas Escrituras são comprovados pela experiência de muitos séculos de santos cristãos que se esforçaram espiritualmente, que contemplaram a Luz criada por Deus. O ícone canônico transmite esta Beleza, a Beleza cheia da Luz Divina do mundo transfigurado. O ícone é o conhecimento concreto e experimentado da santificação espiritual e da transfiguração do corpo do homem. Do mesmo modo que a Palavra, mas em imagens visíveis e por meio de linhas e pinturas, o ícone nos manifesta a revelação dos dogmas de Deus e, ao mostrar ao homem em estado de oração, de graça, nos apresenta o mistério de sua divinização. Em outras palavras, no ícone, com meios materiais se representa a ação transfiguradora da graça. Aqui todo o corpo participa da oração, todo o ser se dirige para Deus.
É necessária a renovação de nossa natureza, a transfiguração dos sentimentos; eles, do mesmo modo que todo o corpo, se fazem diferentes. Esse momento, esse estado é a representação do santo no ícone. Disso decorrem as formas pouco usuais, distintas, não naturalistas, que com frequência nos são incompreensíveis. O ícone não é uma fantasia, não é uma invenção: ele é conhecimento concreto e experimentado, como se fosse o homem representado no estado de graça da transfiguração. É algo como uma cópia do natural, com a ajuda de símbolos. A través deles, a extraordinária grandeza, simplicidade, tranquilidade e graça do movimento no ícone. Por isso, através de seu ritmo de linhas e cores, está sujeito a uma harmonia superior. Ele é o reino do Espírito, o domínio da plenitude da vida superior expresso por intermédio de linhas e cores. Somente as pessoas que viveram este estado puderam criar tais imagens. Por isso, o ícone canônico inspira em nós o estado de oração e o concentra. O ícone é o caminho e o meio, é a oração cristã.
3. A queda da iconografia como consequência da queda da espiritualidade
Deste modo, o ícone expressa a contemplação e o estado no qual o homem vive uma vida igual à imagem que lhe é visível. Somente uma imagem assim pode ser contundente em sua realidade. Por isso, qualquer lembrança que o ícone traga da realidade carnal, da natureza decaída do homem, a sensação da corrompida carne do homem e do espaço físico, contradiz a essência do ícone, o dogma da Transfiguração, já que o corpo e o sangue não podem herdar o Reino de Deus e o corrupto não herda a incorruptibilidade. A introdução, na Igreja, da arte mundana, levou-nos a nos aproximar da obra litúrgica da Igreja com as mesmas exigências que temos para com a arte secular, rebaixar a essência superior ao nível do humano. Tal relação com a arte litúrgica foi o resultado de profunda queda espiritual. Durante os últimos séculos vemos a luta, não contra o ícone como no período iconoclasta, mas a corrupção partindo de dentro; não a heresia aberta, mas a queda espiritual cujo resultado é a incompreensão, a deformação e a substituição da autêntica imagem litúrgica pela imagem falsa, nunca sancionada pela Igreja. Isso se refere não tanto ao dogma da Encarnação de Deus: "Deus se fez homem", mas à divinização do homem através da Encarnação de Deus, isto é, o dogma da Transfiguração: «Para que o homem se faça Deus».
A iconoclastia atual é inconsciente, não está na negação aberta dos ícones, mas na deformação de seu sentido. Na incompreensão de seu significado dogmático e educativo, e na substituição do verdadeiro ícone pela falsa imagem, isto é, um simples quadro sobre um tema religioso. E mesmo que o quadro corresponda iconograficamente a um tema religioso, nele a iconografia substitui o conteúdo religioso por um arbitrário. Está ausente a idéia da transfiguração. Em tais quadros não se representa o mundo transfigurado, transcendente, mas o mundo terrenal, natural; não o superior, mas o inferior; não a carne transfigurada, mas a real.
Não se consegue rezar diante de tais quadros. Eles não são revelação. O retorno à arte autenticamente litúrgica, ao ícone canônico, implica no retorno ao único caminho verdadeiro na arte da Igreja que corresponde a seu Espírito, a seu ensinamento, isto é, o retorno às formas canônicas da arte litúrgica purificada de todo elemento estranho e agregado que deforma os dogmas da Igreja Ortodoxa e rompe a união, levando à individualização e à ruptura. A Igreja é o mundo da união e harmonia de Deus. É este mundo que a Igreja põe diante de nossos olhos e de nossa mente em sua arte.
4. O iconógrafo
O reino do espírito contido no ícone, essa atmosfera «de grande tranquilidade», (Mt 8,26) e «de paz de Deus, que supera qualquer entendimento» (Fl 4,7), não pode ser representado externamente, simplesmente copiando um ícone antigo. A tarefa de quem escreve ícones é neles recriar o mundo superior transfigurado. Isso impõe ao iconógrafo certas obrigações. Por isso, na antiga Rússia os santos não só «tinham grande cuidado e preocupação para que os iconógrafos e seus discípulos copiassem modelos antigos», mas também prestavam atenção especial às qualidades morais do iconógrafo e seu bom comportamento.
"Corresponde ao iconógrafo ser humilde, manso, piedoso. Que não fale em vão, que não ria em excesso, que não brigue, que não seja invejoso, beberrão, ladrão, assassino; que acima de tudo cuide da pureza corporal e espiritual com todo o zelo... Corresponde ao iconógrafo procurar com frequência o padre espiritual, pedir-lhe conselho em tudo e segundo os ensinamentos viver em jejum, oração e abstinência com humilde sabedoria... Se algum dos iconógrafos ou seus discípulos passa a viver sem cumprir as regras: em embriaguez, impureza e qualquer desobediência, deve-se proibi-los, separá-los do trabalho com ícones e não permitir que se aproxime deles"fonte: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/iconografia/icones_teologia_de_sua_veneracao.html
Tradução e autorização para publicação no ECCLESIA por: Pe. José Artulino Besen
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